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Um capítulo da história de Araci: Zezinho do Armarinho

Até a inauguração da BR 116, em 1951, a principal estrada de acesso a Araci passava onde hoje é a praça principal (Praça Nossa Senhora da Conceição) da cidade. A estrada vinha da Rua 7 de setembro e seguia rente à calçada da Prefeitura. Naquele tempo, todo o quarteirão de casas vizinhas à Prefeitura era formado por pensões onde caminhões carregados de migrantes, os chamados paus-de-araras,  paravam, e seus passageiros podiam comer e pernoitar. A seqüência de hospedarias ia até o posto de gasolina que ficava onde hoje está o novo cemitério da cidade. José Tertuliano da Silva, o Seu Zezinho do Armarinho, lembra bem dessa época e afirma que Luiz Gonzaga se hospedou numa daquelas casas, pertencente a José Lima, principal líder político da Cidade. Segundo ele, também é possível que Luís Inácio Lula da Silva, o presidente, tenha parado naquele ponto quando seguia com a sua família para São Paulo. Por falar em viajantes que fizeram sucesso, o próprio Zezinho do Armarinho, que nasceu em 1939 no povoado do Poço-Grande, também precisou sair cedo de casa, ainda adolescente, para ganhar a vida em Alagoinhas. Com uma postura silenciosa, de quem ouve mais do que fala, ele conquistou a Bahia antiga, cidade de São Salvador, e voltou para Araci vitorioso, para abrir um dos estabelecimentos mais vistosos, a barbearia mais chique da região sisaleira nos anos 1960.

O menino que nasceu pobre do sertão, que só tinha a necessidade como guia, virou um exemplo de triunfo entre os homens da cidade. Quando chegou ainda moço em Alagoinhas, Zezinho fez amizade com um funcionário da empresa Leste Ferroviária, que prometeu engajá-lo na Marinha. O homem pediu, no entanto, um tempo para providenciar os documentos e recomendou ao rapaz voltar a Araci e aprender alguma profissão que fosse útil na carreira militar, como a de barbeiro, por exemplo. Por isso, Zezinho voltou à sua terra natal e, num dia de feira, entrou na barbearia de Mané Camilo, a única na sede de Araci, na Rua 7 de setembro, dizendo que sabia cortar cabelo e usar a navalha. Apareceu logo um cliente com uma barba comprida e Zezinho cortou fundo na pele com a sua inexperiência na lâmina. É claro que o dono do estabelecimento percebeu, mas admitiu o jovem no emprego assim mesmo, convencido da sua vontade de trabalhar. E como o tempo passou e a marinha não o convocou, Zezinho acabou indo para Salvador, onde arrumou colocação no Salão Minerva, uma das sete portas de barbeiro que o antigo Mercado Modelo possuía (o antigo mercado ficava onde hoje está o monumento de Mário Cravo, em frente ao Elevador Lacerda). “Ali, eu via toda a malandragem que havia na cidade grande e no porto. Ficava de olho em tudo, não para aprender a fazer o mal, somente para me defender”, lembra Zezinho. Ele conta que, na época, morava no bairro da Ribeira e desfrutava, com o seu salário e a solteirice, do glamour da Rua Chile e do centro da capital da Bahia.

Entre 1959 e 1962 Zezinho morou em São Paulo, trabalhando numa rua próxima ao Museu do Ipiranga . Visitou Santos e se sentiu na Bahia ao conhecer a estação ferroviária, muito semelhante á estação da Calçada. Tanto em São Paulo quanto em Santos, freqüentava a vida noturna, indo a boates e dancings, inclusive naqueles em que dançarinas eram pagas por minuto de acompanhamento. Mesmo assim não se adaptou àquelas cidades e preferiu voltar a Salvador, onde encontrou ocupação no velho bairro da Ribeira. Em 1964, já com 25 anos, decidiu retornar para Araci e ficou trabalhando na obra que mudaria o Poço Grande; a construção do açude que tem o nome daquele povoado. Ganhou a confiança do engenheiro, de quem cortava o cabelo nas horas vagas, e recebeu autorização para montar uma barbearia improvisada, onde passou a atender os trabalhadores à noite, nos seus momentos de folga. Casou em 1966, com Delzita Lima da Silva, que é de Valente, mas residia no Poço Grande com um tio. Voltou então a residir na sede, na Praça Nossa Senhora da Conceição, onde abriu uma barbearia que tinha tudo o que podia haver de melhor na época: espelhos nas paredes, cadeiras reguláveis da Ferrance e uma clientela de políticos, professores e homens de todas as profissões, inclusive os mais humildes. Cuidando de um e de outro freguês, ele acabava sabendo em primeira mão de acontecimentos políticos, crimes, casamentos e todas as notícias da cidade e do mundo.

Com o passar do tempo, começou a oferecer os serviços de relojoeiro e a vender miudezas. Hoje, ele recorda, “Fiz questão de vender jornais. O interesse não era financeiro, mas fazer com que as pessoas da cidade pudessem se informar sobre o mundo lá fora, trazer mais cultura e conhecimento para Araci. Poucas pessoas tinham rádio e era preciso alertar a comunidade sobre os horrores da ditadura”. Foi esse espírito de modernidade que fez Zezinho questionar o fato de os negros e pobres viverem sem acesso a emprego, salário, ou aposentadoria. Na sua mente, as injustiças sociais precisavam ter um fim, e por isso ele começou a dialogar com cidadãos que tinham as mesmas aspirações. Eram tempos difíceis, no entanto, e a ditadura militar proibia qualquer debate de mudança.

Os grupos políticos de esquerda estavam na clandestinidade e gente como Zezinho, que detinha muitas informações sobre o movimento, poderia desaparecer a qualquer hora. Por isso, muitas pessoas evitavam comprar no armarinho. Primeiro por preconceito contra os comunistas, depois por medo de serem vinculados aos “agitadores”. Quando não havia opção, o comprador pedia para ser despachado na porta, alegando pressa. Zezinho, para provocar, fazia-se de desapercebido e atendia com toda a calma, já que ele próprio nada temia. A mesma coisa acontecia nas rodas de conversa, logo que ele chegava, as pessoas se dispersavam. O barbeiro não se importava, sabendo que um dia as coisas teriam que mudar. Ao mesmo tempo, sua casa e os seus companheiros eram espionados por estranhos que chegavam a Araci. Esse foi o caso de um hippie que se fazia de maluco, mas carregava um par de algemas, e de uma família cuja filha moça procurava namorar os homens de oposição ao governo. “Como eu tinha a barbearia no centro da Cidade, minha tarefa era ficar ligado e informar meus companheiros, para que não caíssem em armadilhas da repressão”, explica Zezinho. Os anos foram passando, veio a abertura democrática, em 1979, e Zezinho se integrou, juntamente com Joaquim Messias, Nicolau Carvalho e outros, ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), tendo contribuído decisivamente com a eleição de Waldir Pires em 1985.

Já no governo Waldir, Zezinho organizou um seminário sobre a reorganização do município e sugeriu ao Governo do Estado a pavimentação de uma estrada ligando Nova Soure a Santa Luz, o que seria um importante atalho nas rotas baianas, e incluiria Araci entre os principais roteiros da Bahia, carreando desenvolvimento para esta terra. A idéia não chegou a ser implantada, mas Zezinho acredita que um dia os políticos locais poderão entender e retomar o projeto. Ele lembra com orgulho, também, a luta travada ao lado do Grupo Social de Araci (Grusar), para a instalação do serviço de água na cidade, no fim da década de 1970. Também acompanhou e arquivou um grande número de jornais com informações sobre a descoberta do ouro na cidade e outros eventos políticos e do cotidiano. De tudo o que guardou, ele entregou uma cópia para o Centro Cultural de Araci passar às futuras gerações.

Zezinho aposentou a tesoura de barbeiro, mas continua com o seu armarinho na Praça Nossa Senhora da Conceição. Recentemente, uma doença ainda não identificada o deixou preso a uma cadeira, e ele passa os dias a contemplar o movimento de pessoas na praça, cumprimentando os transeuntes e dando conselhos aos que o procuram. Ele sabe que a sua vida sempre esteve ligada a esta praça e às pessoas desta cidade, que ele tão bem serviu. Foi daqui que projetou uma imagem de profissional e homem responsável para os municípios vizinhos. Ele veio, viu e venceu, e argumenta: “Participei da grande universidade da vida. Não conheço tudo, mas de tudo sei um pouco, e algumas coisas a fundo”. Também oferece uma mensagem aos mais jovens: “Eu sempre gostei de conversar com os mais velhos, a minha vida toda. Aprendi muito com isso; e graças a Deus, pude ver muita coisa”.

Zezinho do Armarinho faleceu em 2010.

Franklin Carvalho nasceu em Araci (BA), em 1968. É jornalista formado pela Universidade Federal da Bahia e com pós-graduação em Direito do Trabalho. É autor de “Câmara e cadeia” (2004), “O encourado” (2009) e “Céus e Terra” (Record, 2016), obra vencedora do Prêmio SESC de Literatura 2016 e do Prêmio São Paulo de Literatura em 2017.