Da esquerda para a direita: Maria do Socorro [Marita], Dina, Domingos Pacífico, Maria Rodrigues Castello Branco e seu marido Cyridiao Ferreira da Silva e a filha destes, Lena Castello Branco Ferreira da Silva, nas Bodas de Prata do casal; foto acervo Lena Castello Branco Ferreira da Silva; Goiânia, GO, 1953.
Autoria de Lena Castello Branco Ferreira
Nessa tarde quente de novembro, atendo o telefone e uma voz desconhecida identifica-se: é alguém de nome Juarez, ligando de Araci, na Bahia. Deseja falar comigo mesma, chama-me de “professora” e diz corretamente meu nome e os (compridos) sobrenomes. Coloco-me à disposição e começamos uma agradável conversa.
Araci é uma cidade localizada a cerca de 200 quilômetros da capital da Bahia, na região Noroeste do estado. Fica à margem da BR-116, no semi-árido, próxima de Serrinha e Tucano, município do qual foi desmembrada, em 1890, a vila de Nossa Senhora da Conceição do Raso – depois Vila do Raso, rebatizada como Araci. Por ali passavam as manadas de gado da Casa da Ponte, cujas sesmarias iam do litoral baiano ao Piauí.
Meu saudoso pai nasceu em Araci. Nunca tive oportunidade de visitar a localidade; mas sei que meu avô paterno foi seu intendente (prefeito), e minha tia Aurinha, professora de gerações de aracienses. Tenho notícia também de que meus avós paternos tinham casa na Praça da Matriz, mas residiam na fazenda do Recreio, na encosta de uma serra próxima.
Pergunto ao meu interlocutor como descobriu meu telefone e ele diz que foi pela Internet. Está bem informado: conhece meu currículo, é leitor do blog que mantenho e me encontrou também no facebook… É muita perseverança, penso eu, e muita tecnologia!
O papo engrena: sinto-me feliz em falar com um conterrâneo dos meus parentes baianos, que conheço pouco. Recém formado em engenharia civil pela Escola Politécnica da Bahia, meu pai, Cyridião Ferreira da Silva, foi trabalhar no Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, no Piauí e no Maranhão, aonde viria a casar-se com minha mãe.
Por motivos diversos, manteve-se afastado de Araci e da Bahia até aposentar-se, quando passou a residir em Salvador. Com minha mãe, fez uma visita aos velhos pagos, mas voltou desencantado: nada mais havia da fazenda ancestral e as pessoas que encontrara não eram as mesmas do seu tempo…É a sina dos idosos e dos saudosistas: guardados na memória, os lugares e as fisionomias mantêm um viço que a realidade inexoravelmente desbota e corrói.
Juarez identifica-se como pesquisador da história de Araci e diz-se interessado em identificar e ter notícias dos descendentes do coronel Vicente Ferreira da Silva, meu avô paterno. Acrescenta que ele foi pessoa de destaque no município; e que a cidade agora se empenha em ampliar o conhecimento de sua própria história, inclusive com a instalação de um Museu e um Centro de Cultura.
De conversa em conversa, chegamos a conclusão de que somos parentes: Juarez é tetraneto de uma irmã da minha avó Virgínia, filhas do proprietário da fazenda da Madeira, afamada na região. Naqueles tempos distantes, receberam educação formal, ou seja, sabiam ler, escrever, fazer contas, conheciam a doutrina crista, talvez arranhassem o francês – o que as distinguia da maior parte das moças de seu tempo.
Na crônica da família, é celebrada em prosa e verso a história de amor tecida entre Virgínia e Vicente. Os dois jovens eram primos: ela, do ramo rico da família; ele, do lado pobre. Ela, estudada e prendada; ele, de poucas letras, com um violão a tiracolo, pervagava pelo sertão fazendo serestas e negociando com gado.
Vicente era alto, desempenado, olhar inteligente e feições bonitas – e logo conquistou o coração da priminha letrada. O pai dela opôs-se ao namoro, de forma irredutível. Irremediavelmente apaixonados, fugiram numa noite sem lua. Respeitoso, o jovem enamorado levou-a na garupa do cavalo para Araci, onde a entregou aos cuidados da madrinha. Ali, ela ficou bem guardada, até que veio o padre em desobriga e os casou. E Vicente prometeu à amada: ele lhe daria uma casa melhor do que a de seus familiares; e todos os filhos que viessem a ter seriam doutores.
Cumpriu o prometido. Empreendedor e dinâmico, ampliou o negócio de gado: até na distante São José do Duro, em Goiás, ele mantinha prepostos que negociavam em seu nome a compra de boiadas. Na estação da seca, Vicente ia pessoalmente fazer os pagamentos e conduzir as manadas para Feira de Santana, onde as engordava para vendia. Era algo ciclópico: vencer centenas de léguas a cavalo, em um mundo rústico e selvagem, sem os mínimos confortos da civilização; e repetir esse périplo ano após ano. Talvez lhe amenizassem as noites as notas do violão, dedilhado à luz das estrelas.
Não satisfeito, o intrépido sertanejo montou um curtume de peles de cabras, que exportava para os Estados Unidos. Os frutos de tantos trabalhos e canseiras permitiram-lhe educar os filhos em Salvador da Bahia e formá-los em cursos superiores. E não somente os homens: seguindo a tradição de mulheres letradas na família, minha tia Deraldina, que era normalista, veio a formar-se na Escola de Odontologia da Bahia, uma das primeiras moças baianas a fazê-lo.
Ainda haveria muito a contar. Juarez – meu recém-identificado parente – também tem histórias e documentos interessantes para comentar. Vamos trocar informações e figurinhas. Com a certeza de que este é apenas o primeiro reencontro com raízes bem plantadas em solo baiano.
Lena Castello Branco Ferreira é descendente da família de Araci, neta do Cel. Vicente Ferreira da Silva e sobrinha das professoras Aura e Deraldina. Doutora em História e Professora Universitária . Foi colunista do Diário da Manhã, onde escreveu semanalmente. É também autora de diversos livros, a exemplo do premiado Arraial e Coronel: (dois estudos de História Social). Faleu em 2023 aos 92 anos.
*Texto originalmente publicado no Jornal Diário da Manhã em 2013
https://opopular.com.br/cidades/morre-professora-lena-castello-branco-aos-92-anos-1.3076689